quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DAS INCOMPATIBILIDADES NO EXERCÍCIO DE MANDATOS POLÍTICOS ELECTIVOS: intervenção de João Titta Maurício no XV Encontro Público PASC - Regime de Incompatibilidades dos Deputados da Assembleia da República.


Intervenção de João Titta Maurício, Professor Auxiliar Convidado na Faculdade de Direito da Universidade Lusófona, na Sessão de Abertura do XV ENCONTRO PÚBLICO PASC - REGIME DE INCOMPATIBILIDADES DOS DEPUTADOS DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, realizado no dia 29 de Novembro de 2013, na Sala do Senado da Assembleia da República.



I - Três pontos prévios:



  • Informar que a oportunidade para usar do privilégio de aqui estar se deve a alguém a quem muito admiro e devo e que, por uma muito generosa decisão, sugeriu o meu nome como uma possível alternativa à sua indisponibilidade. Por isso, agradeço a gentileza do convite/desafio que me foi feito e que me permite aqui tornar públicas as minhas reflexões sobre a questão do regime de incompatibilidade dos Deputados e, agradecendo a sugestão, não deixar de lamentar a indisponibilidade do Senhor Professor António Braz Teixeira, cuja experiência e sapiência teriam, com toda a certeza, produzido ideias e palavras que seriam, para todos nós, bem mais relevantes e proveitosas; 
  • a título de declaração de interesses (e, pelo sentido e conteúdo da minha comunicação, perceber-se-á a sua necessidade), informar que, desde 1994, estou como militante do CDS-PP, que nele desempenho (ou já desempenhei) funções, desde o nível concelhio ao de membro da Comissão Política Nacional, e em cujas listas concorri e/ou fui eleito, quer como Deputado Municipal na Moita (no pretérito mandato) quer como Deputado nesta AR (em 2005 e durante uns “imensos” 3 dias… em que 1 correspondeu à sessão de instalação e os outros 2 se limitaram a ser de espera pela tomada de posse do novo Governo). No entanto, tal “estado” de militância partidária – acreditem! – jamais me embargou a Liberdade ou tolheu as ideias… e muito menos alguma vez me “convocou” para ser “portador” ou “porta-voz” de uma mensagem de um “colectivo” partidário ao qual, se assim fosse, sempre recusaria pertencer. É por isso, para realçar o carácter voluntário e a transitório e destacar a minha liberdade, que gosto sempre deixar claro que não “sou” militante mas “estou” militante; 
  • finalmente, ainda num registo “antes-da-ordem-do-dia”, uma referência para, antecipadamente, justificar o estilo e a perspectiva em que tratei a questão que me foi proposta. Sou licenciado em Direito e tenho a convicção que, por esse facto – e não sabendo se isso é bom ou mau –, acabo por olhar o Real, o mundo e os factos que nele ocorrem, através dessas “lentes” jurídicas que adquiri. As quais, aliás, são muito úteis (se não mesmo indispensáveis) para se produzir uma menos desajustada reflexão sobre tudo o que tenha a ver com essa pura ficção jurídica que indistintamente chamamos Estado e à qual, não poucos e não poucas vezes, se atribuem características antropomórficas, paternais e, cada vez mais, “para-divinas”. Porém, se a minha formação académica de base é o Direito, acabei por lhe “ajuntar” especializações e outras perspectivas do Conhecimento, em virtude dos meus “apetites” intelectuais e dos desafios com que, pelas circunstâncias da minha vida profissional, fui sendo confrontado: o Direito Constitucional, a Ciência Política e a Filosofia Jurídica (em especial na dimensão Filosofia Política e do Estado). E bastante dessas “deformações” resultam em muito de que esta comunicação é feita. 


II - «Se a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir». George Orwell



Comecemos por referir a utilidade temporal do abordar deste assunto.

Por força da austeridade mas também, como um seu factor ou um dos seus principais fautores, em virtude de uma evidente alteração cultural que se expressa através de uma profunda crise de Virtudes [Cf. Sobre esta matéria o conteúdo e o sentido inscrito numa pretérita Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa, “Crise de Sociedade, Crise de Civilização], vivemos circunstâncias de incerteza e de enormes dificuldades económicas, de medo ao ver o presente e de enormes preocupações pelo futuro, as quais (historicamente) acabam também por ser o “berço” de muitas situações em que as dificuldades, que já se estendem a todos os sectores da actividade, apuram o engenho humano, o qual, se em tempos normais se acha legal e socialmente enquadrado, também é verdade que as dificuldades o aguçam de modo a que sejam procuradas soluções à margem da legalidade e que são, social e eticamente, censuráveis [E mesmo que se pudesse argumentar que os factos documentados não o comprovam, sempre seria avisado que, por exemplo, se tomasse em consideração o Barómetro Global da Corrupção de 2010, segundo o qual – principalmente pelo agravamento da percepção sobre a corrupção – os europeus, seis em cada 10, consideram que os níveis de corrupção aumentaram nos últimos três anos]  – o que tende a tornar mais escuras as cores com que se descrevem os factos e se apresentam possíveis soluções.

Todavia, é também nestes tempos de crise – e que é igualmente um tempo de transformações e de oportunidades de emendar ou de recomeçar melhor – que, por isso, parece ser o ajustado para reflexões e decisões que possam remover alguns obstáculos, esclarecer alguns equívocos, possibilitar um diferente futuro.

Nesse sentido – e porque é mais sobre o futuro que eu quero falar – cumpre, para efeitos de reflexão, procurar começar por determinar qual o porquê de se dever consagrar um regime de incompatibilidades para o exercício (ou até a candidatura) a cargos políticos electivos.

Em primeiro lugar, porque se tem a percepção que a corrupção, sendo um dos principais causas-problemas das circunstâncias presentes, é principalmente o resultado da inexistência de uma clarificação que impeça a confusão entre interesses públicos e interesses privados – corrupção que, deste modo, acaba por reduzir a capacidade de resposta do Estado e colocar em causa a satisfação do Bem Comum [«Porque aumenta o custo das obras e serviços públicos, agravando a despesa do Estado e obrigando a uma maior carga fiscal sobre os cidadãos e as empresas. Para além dos custos económicos, tem também um impacto direto na qualidade de vida dos cidadãos, porque distorce o acesso aos bens e serviços públicos. O suborno funciona como filtro: quem paga tem acesso, quem não paga sujeita-se ao que for possível. A corrupção é também um imposto regressivo: taxa os mais vulneráveis»]; em segundo lugar, porque é convicção dominante que este problema é resolúvel através de um aumento da legislação; e, finalmente, que o sentido dessa legislação deverá ser o de restringir ao máximo a possibilidade de acesso a cargos electivos a cada vez mais pessoas e vedando-a mesmo a certos grupos profissionais.

Estas são novidades próprias de um tempo presente, por aplicação contemporânea de ideias que não são mesmo nada uma inovação.

Mas, indo por partes: o que pode motivar a existência de um regime de incompatibilidades?

A esta pergunta a resposta acertada e natural será sempre a de que existem circunstâncias que mais do que um subjectivo justificar, resultam de um objectivo impedimento. Por exemplo, consagrado que seja o princípio da separação de poderes (à maneira continental europeia), é evidente a regra geral de que, com excepção dos membros do Governo, não podem candidatar-se ou ser eleitos Deputados todos aqueles que estiverem no exercício pleno de cargos noutros poderes constitucionais (por exemplo, juízes, magistrados do Ministério Público), todos aqueles que exerçam funções especiais (por exemplo, os militares) ou, segundo alguma prática, aqueles que se encontrem na condição de trabalhadores da função pública e que integram o quadro de um organismo ou serviço em que exerçam uma actividade profissional com subordinação jurídica, no âmbito, por exemplo, da autarquia a que possam pretender candidatar-se.

Mas, em virtude de modificações (para pior) observadas em quase todos os Estados democráticos [Ainda que nos Estados não-democráticos existam problemas de natureza semelhante e com contornos bem mais graves, não é este o paradigma que procuramos e, por isso, não é aqui objecto da nossa reflexão]  – com um especial incremento a partir da introdução da opção Estado social como o único, principal e necessário modo de organização do poder político –, fizeram-se cada vez mais audíveis os brados daqueles que, por um lado, (objectivamente) propugnam pela actividade política como carreira (e em regime de exclusividade) e, por outro, reclamam cada vez maiores restrições ao direito de candidatura e exercício de cargos políticos. Surgiram então limitações relacionadas com subjectivos conflitos de interesses , nomeadamente aquelas situações em que um eleito (ou candidato) – e, por isso, numa posição de confiança – têm outros interesses profissionais ou pessoais que se podem sobrepôr aos que são inerentes ao cargo, e que lhes permite usar informações ou contactos entretanto adquiridos, para beneficio próprio ou de terceiros; assim influenciando, de forma indevida, o modo como desempenha (ou como outros desempenham) os seus deveres e responsabilidades [Aqui seguimos muito de perto o trabalho de Pedro Nunes (Cf. “Conflitos de interesse: reflexões ao regime do pós-emprego público”. Economia Global e Gestão, Lisboa, v. 15, nº 2, Set. 2010, acessos em 26 Nov. 2013) que afirma que «o conceito de “conflito de interesse[s]” é o conflito que poderá sobrevir entre o “interesse público” e o “interesse privado” quando estão envolvidos titulares de cargos políticos, nomeados ou eleitos, e os altos cargos públicos de livre designação do poder político onde, um dos denominadores, pode ser potencialmente capaz de exercer influência, individual ou não, directa e indirectamente, e que afecte os seus deveres e responsabilidades. “Conflito de interesse[s]” é um conceito social, político, económico, cultural e jurídico (Demmke et al., 2007), carregado de controvérsia e ambiguidade (OCDE, 2006a, 2006b). A compreensão, pelos menos nas duas últimas décadas, do que poderá abranger aquele conceito está em constante evolução, apesar dos esforços significativos no aperfeiçoamento dos padrões da moralidade pública».].

Mas aqui agravaram-se os problemas, pois não há pior solução do que aquela que, semanticamente, muito parece prometer mas que, na prática, pouco poderia alcançar. E todos estes percalços tornam-se ainda mais graves quando se lhes acrescenta – e é quase uma inevitabilidade – aquilo a que alguns chamam «os efeitos não-queridos» (e não-previstos) associados ao resultado de tantos e tão bondosos (e generosos) propósitos dos processos de incremento legislativo ou de aumento da presença do Estado – e que, no caso presente, se manifesta, por exemplo, por uma evidente diminuição na qualidade dos agentes políticos e na produção legislativa (ambas com uma origem que, e não estranhamente, cronologicamente coincide com o início deste impulso legislativo restritivo).

Houve em todo este processo enormes equívocos e manifestas infelicidades. Cuidou-se pouco de se tomar em consideração a distinção, nas características e capacidades, entre funções em órgãos executivos e funções em órgãos deliberativos ou representativos (e esta distinção é crucial para, por um lado, não se confundir a legítima prossecução de interesses privados daquela que só pode considerar-se como ilegítima; e, por outro, para não se estrangular a primeira, acaba por se permitir a “fuga” na segunda). Por outro, não se tomou bem em consideração a evidente e enorme diferença entre eleitos e funcionários públicos, algo que se tornou mais patente e recorrente a partir da altura em que a actividade política como “carreira” passou a ser o modo preferido do legislador: não se podem confundir as razões de ser da consagração de incompatibilidades no exercício de cargos políticos com regime para os funcionários públicos, pois estes últimos não são eleitos... e isso faz toda a diferença. Finalmente, ao se ter optado por generalizações e afastando-se a possibilidade da equidade de um juízo casuístico, o resultado acabou por redundar num esmagador número de “não-decisões”... que só beneficiam os comportamentos que deveriam ter sido objecto de condenação.

Assim, as limitações criadas como resposta a circunstâncias fácticas que resultavam de episódios concretos e com protagonistas subjectivamente identificáveis, tornaram-se (pelas dificuldades de prova e de condenação) numa espécie de “pesca de arrasto”, isto é, em proibições de carácter genérico aplicáveis a todos aqueles que, por exemplo, desempenham a mesma profissão. Estas últimas acabaram por gerar um conjunto de incompatibilidades que não têm uma natureza objectiva, antes são uma espécie de condenação colectiva de uma classe profissional, acabando por misturar todos numa espécie de inilidível “pecado original”, sem hipóteses de redenção. O estranho é que não se tenha em atenção que há uma estreita ligação entre estas limitações e os sistemas eleitorais por lista, na medida em que só nestes aquelas fazem algum sentido – pois que nos sistemas uninominais os efeitos, por exemplo, da percepção do “conflito de interesses” ou da corrupção, torna o juízo condenatório para ambos em algo de imediato, pessoal e intransmissível.

A condenação à incompatibilidade geral de candidatura para um grupo inteiro (quer de forma declarada quer de forma implícita – por exemplo, pela exigência de um regime de dedicação exclusiva) é, por um lado, equivalente à discriminatória e abusiva afirmação de que, por razões de segurança, devemos presumir que todos os ciganos são ladrões; e, por outro, a condenação (com um juízo valorativo tão negativo quanto generalizador) de um grupo profissional inteiro à impossibilidade de um dos seus membros se poder candidatar, além de ser de constitucionalidade duvidosa e eticamente inaceitável, resulta num de dois efeitos (ou em ambos): 

  • no condenar, por exemplo, todos os advogados a terem que deixar de o ser como condição imperativa para o serviço público;
  • no condenar a Política a só ter como “actores” os políticos “de carreira” ou trabalhadores por conta de outrem [Claro que os “ricos” há muito que estariam excluídos]. 

Ou seja, em ambos os casos, o resultado é um prejuízo para a Política e para o serviço ao Bem Comum.


III - «Não alcançamos a Liberdade buscando a Liberdade, mas sim a Verdade. A Liberdade não é um fim, mas uma consequência». Leon Tolstoi



Mas pior, pois como (ainda que adaptando o sentido) disse Milton Friedman: «Whenever we depart from voluntary cooperation, and try to do good by using force, the bad moral value of force triumph over good intentions» – o resultado desta solução representa uma inaceitável violação de um dos mais importantes Direitos Fundamentais: a liberdade de voto!

Tal gritante violação de um Direito Fundamental inerente ao Homem e à Democracia é, em Portugal, uma das mais recentes e recorrentes más novidades. A sua última manifestação ocorreu durante a polémica sobre o âmbito de aplicação da “Lei sobre os limites à renovação sucessiva de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais”. E sobre ela, além do douto acórdão do Tribunal Constitucional, é de merecida justiça realçar um artigo de Paulo Otero [“Da limitação à renovação sucessiva de mandatos dos presidentes de órgãos executivos autárquicos”, in Direito & Política, nº 4, Julho-Outubro de 2013, pp. 92 e ss.]  onde este, de um modo que me parece ser claro para todos e na esteira da justiça constitucional – que classifica as inelegibilidades eleitorais como «limite[s] negativo[s] ao direito de sufrágio passivo» [Cf. Acórdão nº 532/89, de 17 de Novembro de 1989; e Acórdão 364/91, de 31 de Julho de 1991] – afirma aquele catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa que «a capacidade eleitoral passiva, enquanto forma de participação política essencial numa democracia pluralista, é uma componente tão valiosa num Estado democrático quanto se mostra ser a tradicional capacidade eleitoral a[c]tiva: se é certo que esta encontra naquela o seu pressuposto, também é verdade que aquela encontra nesta a sua razão de ser» [Paulo Otero, in artigo citado, p. 95]. Ou seja, «a capacidade eleitoral passiva é uma outra designação para um direito fundamental: o direito de acesso a cargos públicos electivos (...) [ou seja, é] um direito fundamental de participação na vida pública» [Idem, p. 97]. Neste artigo, Paulo Otero, referindo-se à dúvida sobre a metodologia adequada à interpretação daquela Lei, afirma que «o intérprete ou o aplicador encontra-se vinculado a conferir-lhes a máxima efe[c]tividade interpretativa» [Ibidem]  pois que, «garantindo-se a máxima efe[c]tividade das normas envolvendo direitos fundamentais, se assegura uma eficácia reforçada das normas constitucionais de um Estado de direitos fundamentais» [Idem, p. 98].

Mas subsiste a dúvida: estes cuidados (para não dizer limites) ao voluntarismo nas restrições à capacidade eleitoral passiva dirigem-se apenas ao intérprete e ao aplicador, ou devem também ter como destinatário o legislador (mesmo na sua “incarnação” como poder constituinte)? Ou seja, são legítimas e compatíveis com as constituições democráticas todas e quaisquer incompatibilidades ou impedimentos para candidatura ou exercício de cargos políticos? E, se não, onde se deverá demarcar a fronteira? Onde se estabeleceria o limite às incompatibilidades? Dever-se-ia vedar o acesso aos advogados porque podem representar interesses através dos seus escritórios? E porque não aos Funcionários Públicos? Afinal, são os seus colegas os principais destinatários (e beneficiários) de muitas decisões da AR... e, mais tarde, quando regressarem das suas funções electivas, não serão também eles próprios seus beneficiários? E se pensássemos nos desempregados: afinal, não são os Deputados quem aprova o OE e muita legislação que regula e satisfaz as necessidades daqueles? E um médico, podendo ser Deputado, poderia fazer parte da Comissão de Saúde? E seria aceitável que um ambientalista estivesse na Comissão do Ambiente, Ordenamento do Território e Poder Local?

Afinal, todos eles não representam interesses próprios e particulares?!?

Porque é que um advogado que, por exemplo, se dedique a divórcios, não poderá acumular... mas um professor universitário já o pode?

Porque é que aqueles que desempenham cargos em empresas não se poderiam candidatar, mas aqueles que o fazem em associações cívicas (também elas são lobbies) já podem?

Porque é que um consultor de empresas não... mas um alto-quadro da Administração Pública já pode?

E se alguém, impedido por um muito lucrativo conflito de interesses, optar por não concorrer senão a cargos partidários, conseguindo, a partir daí, controlar os candidatos e os eleitos, o chamado “cacique”, dever-se-á então estender o braço do regime de impedimentos até aos cargos executivos dos partidos ao nível local?

Além disso, se não são admissíveis crimes por associação objectiva, como podemos aceitar um regime que consagre incompatibilidades genéricas de candidatura aplicáveis a um grupo inteiro? Como justificar que haja uma proibição genérica para certas categorias profissionais ou actividades... como se houvesse uma justa desconfiança e condenação colectiva?!?

Ou será que já é perceptível como é abusivo e aleatório fixar regras de impedimentos generalizadores, pois que, em última análise, a diferença entre os grupos impedidos e os não-impedidos resulta apenas de uma escolha de valor que está exclusivamente dependente dos gostos ou sensibilidades do legislador. Ou da eficácia do trabalho de pressão da parte de certos lobbies...

Um regime de incompatibilidades, cheio de especificações e generalizações, pela sua ilógica e injustiça intrínsecas, acaba por não ser mais do que uma "muito esburacada rede de pesca". E se não o fosse era mais um daqueles absurdos típicos do positivismo jurídico: porque não há coisa mais fácil de imaginar do que motivos para incompatibilidades, o resultado seria um parlamento vazio ou cheio de inutilidades servis os quais, porque incapazes de, como curriculum, apresentar um “ontem de vida” fora da política, têm o seu futuro dependente da sua capacidade de acomodação à adequada liderança.

Ora, assim sendo, as regras que, nesta questão, proporia seriam sempre aquelas que julgo serem as mais eficazes para produzir um resultado concreto e com o mínimo de injustiça.

O problema não está em os Deputados defenderem interesses. O Deputado representa o Povo, mas continua (e deve poder continuar) a ser um homem com vida, interesses e compromissos para lá da política.

O problema será se esses interesses forem ilegítimos. E se o forem, ele tenderá a fazê-lo às escondidas e sobra para o sistema punitivo o ónus da prova.

O problema é o sistema, porque cheio de restrições e incompatibilidades, dar a ilusão e a presunção de que não o fazem. Fixando em quem acusa, o ónus de provar que isso se passa e que é ilícito. Pelo contrário, se ao candidato se atribuísse a total responsabilidade, em liberdade, pela declaração de interesses e incompatibilidades, mesmo que os omitidos fossem interesses bondosos e legítimos, o facto jurídico com relevância seria o mero secretismo e pertenceria ao candidato o ónus de provar a não incompatibilidade, a não-ilegitimidade e a não-ilicitude. E mesmo que as dúvidas formais fossem afastadas, pela publicidade ou mediatização desses factos, sobraria sempre a possibilidade da sanção política, promovida pelos eleitores.

O actual modelo (ou o pretendido hiper-restritivo) apenas atrai personagens sem um "ontem de vida" e que, por isso, se tornam “carreiristas”, presas fáceis para os interesses (sejam os externos à política, seja por submissão às chefias partidárias). E assim, um regime hiper-restritivo de incompatibilidades, ao invés de garantir Deputados independentes, acaba por se tornar num verdadeiro "viveiro", que acolhe e alimenta uma fauna que todos queremos que não obtenha acolhimento na actividade política!

Repito a minha convicção: um regime genérico de incompatibilidades não é solução.

Na hipótese de voluntária declaração, a coisa até é bem fácil: não revelou os interesses, presume-se a culpa e declara-se a perda do mandato!

A solução não está numa lei de incompatibilidades genéricas. Está na aplicação dos princípios elementares que comungamos... numa sanção clara... e numa eficácia rápida desse sanção.

O interesse declarado só pode ser um interesse legítimo. A sua declaração serve para 2 fins: primeiro, para que, tornando-o público, a decisão de cada um dos eleitores possa ser não-desinformada; segundo, para que, por exemplo, no momento da discussão e votação, se possa eticamente aferir sobre o comportamento do eleito.

Os interesses não declarados devem presumir-se como ilegítimos (ou então servem para objectivamente qualificar tal omissão como ilegítima), o que determina a cassação do mandato.

É de vital importância a existência de normas verdadeiramente impositivas da transparência sobre o património e os rendimentos dos candidatos. Prefiro um modelo em que cabe aos candidatos a apresentação das situações de incompatibilidade... e uma sanção imediata quando se descobrem aquelas que não são declaradas. Só assim se poderá sustentar uma proposta de inversão do ónus da prova que não seja inconstitucional.


IV - «Liberdade significa responsabilidade. É por isso que tanta gente tem medo dela». George Bernard Shaw



Não padeço de “optimismo crónico”. Pelo contrário, conto-me entre os que afirmam “as vantagens do Pessimismo” e que as mesmas tornam-se socialmente úteis quando associadas com um uso inteligente de algumas das características que, apesar de tidas como negativas, são reconhecidas à maioria dos membros da espécie humana. Não parto da bondade humana, nem atribuo às leis um valor e uma capacidade quase absolutos. E entendo que as normas jurídicas que constroem e regulam o funcionamento desse complexo de institutos jurídicos em que se constitui a ficção Estado jamais devem ceder à ilusão de que este deve ser dotado de tantas prerrogativas e de tantos poderes quantos os necessários para cumprir as promessas ideológicas tornadas semântica constitucional, as quais assentam sempre numa perigosíssima (porque subliminar e não dita) presunção: de que o Homem, envergando “vestes públicas”, se torna incapaz de todos os defeitos e imperfeições dos quais são acusados de possuir quando delas “despidos”. Ora tenho por convicção que os “príncipes bons” são uma raridade histórica tão pouco provável quanto aquela de, nos derbies de Lisboa, se encontrarem árbitros competentes e aptos para apitarem penalties a favor do Sporting.

Mais do que um feixe de leis e proibições genéricas, a solução é a conjugação da Liberdade com a Responsabilidade. Defenderei sempre modelos que tenham a Liberdade como princípio primeiro. E a Responsabilidade como decorrência certa e sempre exigida. É comum e generalizada a persistente ideia que não compreende que o excesso de leis é o fértil “húmus” em que melhor se desenvolve tudo aquilo que, com elas, se pretende combater. Além de ser um enorme fautor da “infantilização ética” que torna “desculpáveis” e “normais” certos comportamentos abusivos. Possivelmente é por esta razão de enorme “infantilização ética” que colhe o triste exemplo de um eficaz slogan de uma campanha eleitoral feita “boca-a-orelha”: «ele rouba, mas faz!», quando um eleitorado exigente e eticamente maduro sempre responderia que «ele até pode fazer,... mas rouba!»

E, por isso, se o que se pretende é controlar a corrupção e sancionar os conflitos de interesses, então possivelmente não nos podemos limitar a criar leis sobre incompatibilidades. Mas também percebermos que é mais importante cuidar das circunstâncias que geram a oportunidade para os conflitos de interesses e a corrupção. E, provavelmente, descobrir-se-á que o sistema eleitoral com apresentação de listas fechadas é o cenário mais favorável, e com poucas hipóteses de resistência, à reprodução de propensões eticamente erradas e a diluir responsabilidades (o que, naturalmente, dificulta uma sanção política justa).

Não acredito em soluções milagrosas e definitivas, mas creio ser historicamente demonstrável que um sistema eleitoral como o inglês (uninominal, maioritário a uma volta) é o menos permeável e aquele que possibilita uma solução com duas linhas de vigilância e quase garantida sanção para os prevaricadores: a primeira linha de vigilância, caberia aos eleitores e aos media (além da oposição) de cada círculo eleitoral. E qualquer "descuido" da parte do eleito seria, em virtude da inversão do ónus da prova, de imediato resolvido pela segunda linha, o sistema judicial. Além de que os partidos perderiam o monopólio do direito de apresentação de candidatos, e seriam forçados a apresentar os seus melhores... acabando as "boleias" que só servem aos carreiristas, os incompetentes e os serviçais dos chefes.

“Liberdade & Responsabilidade” é o melhor dos binómios e o mais ajustado à Democracia. As proibições que discriminam profissões inteiras (apenas atribuindo a todos um desvalor negativo genérico) são-me incompreensíveis e, em última análise, acabam numa proibição para todos ou numa apriorística, orientada e ilegítima selecção da composição parlamentar.

Declarações voluntárias e verdadeiras.

Transparência e controle público dessas declarações.

Sanções judiciais céleres em virtude da inversão do ónus da prova.

Candidaturas uninominais, responsabilização dos deputados.

Os eleitores escolhem.

Simple as that!

Sem comentários:

Enviar um comentário